E a guerra, enfim, noticiada na província*

Sr. Lindolfo nunca voltava para casa sem antes escutar o barulho da impressão. Depois do trabalho artesanal do linotipo, era a vez das máquinas. E elas rangiam. Metal com metal, metal com papel, cheiro de tinta. A novidade vai estar pronta. Embrulhada, letrada e numerada.

Amanhã as manchetes vão anunciar o que Sr. Lindolfo havia escutado com tanta atenção no rádio. O locutor informou que a Polônia não é mais um país soberano. Na sua coluna diária, Sr. Lindolfo quer ir além e especula que a França é a próxima vítima. O Japão assola o oriente e sejam quais forem as boas intenções dos redatores, estão eles desde já orientados a dizer que a guerra é mundial. Mas os homens que fazem a guerra fizeram também os cabos submarinos. Corre ao telefone, sintoniza o rádio para saber que Vargas vai lutar contra o Eixo. Tudo vai estar estampado na primeira página. Ainda que seja apenas por uma vez.

O assunto que sai pela manhã está pronto, a máquina de impressão terminou o serviço e ainda há tempo para o Sr. Lindolfo dar mais uma espiada no que vai pautar as discussões nos bares e nas casas das famílias. O chacoalhar da máquina de fazer notícia sempre foi injusto com Sr. Lindolfo. O movimento é irreversível. Não permite alterar o que chega por telégrafo à redação. Pois agora, ele sabe que na França instauraram uma tal de República de Vichy e que tem gente muito satisfeita com a vestimenta fascista daquele país. Não dá mais para contar para todo mundo. E o Sr. Lindolfo nunca volta para casa sem antes saber o que deixou de ser publicado no seu diário. Observa os exemplares só para confirmar o que vai faltar. Chega em casa, tenta organizar as idéias sobre aquele mundo confuso e lamenta por não poder tornar o ontem tão novo quanto o hoje.

*Lindolfo Espechit (1897-1999), jornalista,
foi diretor da Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais,
fez as primeiras transmissões radiofônicas no estado.

A culpa


Dizem que no seu apogeu, Vila Rica - mais tarde chamada definitivamente de Ouro Preto - era mais populosa do que Londres e Paris. Narrativas acusam uma proporção de escravos e homens livres de três para um na metade do século 18. As razões de tal ordenamento são bastante conhecidas, cujas motivações se encerram na finalidade econômica com a qual a Corôa Portuguesa fez nortear os traçados dos caminhos e picadas que conduziam ao eldorado barroco.

É digna de menção a igreja que homenageia o chamado São Francisco de Assis, ícone católico que a história da cristandade atesta ter proclamado o modo de vida simples e essencial, nos limites entre a pobreza e a miserabilidade, sem qualquer sinal de luxo ou ostentação. Os templos ouro-pretanos, a exemplo da Igreja São Francisco de Assis, erguidos durante a efervescente corrida ao ouro, exibem exuberante fausto. São pomposamente adornados, recobertos com detalhes dourados, entalhes encrustados do ouro das minas, como se louvassem, com todos os indícios de riqueza, justamente aquele que, entre os crentes e tementes das forças celestiais, era o mais avesso à materialidade mundana.

Por certo, não é gratuita a corrente idéia de que o barroco abriga a contradição das consciências, das mentalidades e das estéticas.