a.m.


A insônia é por vezes uma imagem em branco, indefinida, à espera de um traço que contrarie sua tendência em permanecer inviolável até o raiar do dia.

Tropeiro das Gerais


Por Rodrigo Andrade

Um bom amigo me encomendou um texto sobre um prato mineiro. Com sua mineira educação não estipulou prazos ou receitas, mas desde que aceitei honrado a tarefa, o tema passeia na minha cabeça. De cara disse: Feijão Tropeiro!

Queria um prato que eu adorasse já que em culinária só me inspiro a escrever do que gosto (tudo bem, quase tudo). Queria também um prato síntese de nossa cozinha, que remetesse à roça e cidade, ao antigo e contemporâneo, ou melhor, à "atemporalidade" da culinária-cultura-filosofia-sentimento mineiros.

Nosso prato-homenagem começa pelo próprio desenhar de nosso estado, tropeiro, matula de desbravadores, comida de resistência na riqueza de calorias e nutrientes, seco para ser comido a qualquer hora-lugar e "de capitão" (aos montinhos/bolinhos com a mão, de arremesso). Claro que isso é origem (às vezes revivida) e hoje nosso astro frequenta de marmitex a porcelanas.

Tudo começa com o óleo na panela (ou banha para os privilegiados) dourando e fazendo cantar cebola e alho. Afinal, alguma comida de sal mineira começa de outra forma?

Sua base, o feijão, marrom, nos leva às roças no fundo das casas de fazenda, subsistência e renda, que continua em nosso dia a dia de cidade grande mesmo com os buffets de suflês, terrines e tantas inventices importadas.

A farinha, de mandioca, o pão brasileiro. Partícipe de todas as culinárias brasis e sendo um acompanha tudo: de peixe a charque, da entrada à sobremesa, do bolo doce ao churrasco. E na nossa casa, do tutu, do pirão do surubim do São Francisco, da paçoca de carne, no prato de todo nortista, acompanhando qualquer coisa.

O porco oferece o bacon, a lingüiça e o torresmo. Quando não, também no lombo, convidado frequente do Tropeiro. A proteína mineira, de tempos em que gigolávamos mais o leite que a carne da vaca.

O ovo! Mais quintal, impossível. Cozido e em fatias, caprichosamente compondo o prato, ou em cubos no resto da confusão. Oferece um pouco mais de proteína e gordura, já que comida mineira é de sustância.

A cebolinha, enfeite só que nada! Nos lembra que temos horta e o verde tem que participar, até para cortar a maldade do resto...

E a couve que não é tropeiro, mas como goiabada e queijo, sempre juntos, mineiramente, sem se ofuscarem, complementando-se.

E, claro, a cachaça! Acompanhamento chama-fome do nosso prato. O forte álcool pedindo gordura ao paladar, lembrando-nos cana e madeira.

Quer coisa mais mineira que reunião? E o Tropeiro é isso, um pouco do tudo que temos de bom, misturado (como a gente). Em casa, no boteco, no restaurante, na feira, no Mineirão (que saudade).

Como as Minas Gerais, síntese do norte-sul-leste-oeste brasileiros, o feijão tropeiro é nossa cozinha. No fogão a lenha, a gás ou industrial. Na roça do alto da montanha, à beira da represa ou na cidade.


Música para imagens em movimento



Arnaldo Baptista improvisa ao piano trilha sonora para o filme “Viagem à Lua” (1902), de Georges Méliès.

Passagem



Se a vela ao queimar dá início a sua finitude, a vida do outro inscreve sua eternidade no vivido de nós mesmos.


In Memoriam (Amaury de Castro)

Quase noite


A cortina da noite encobria os últimos respingos da luz do dia. Na paisagem infinita que se alinha ao horizonte, prosperam impressões que o manto do crepúsculo insinua sem revelar.

Monocromático


Certa vez havia um caminho com tons de cinza, sem os sinais das cores e a sua sensação festiva. No fim do trajeto era possível andar sobre os retalhos que sobraram da realidade e que nunca mais iriam se parecer com ela.  

 

Temperaturas


Na companhia do silêncio invernal do cerrado, sob a radiação dos raios dourados que esquentam os espasmos que percorrem o corpo, sua quase presença na cena muda muda tudo. 

Arquivos Imperfeitos*


No interior das memórias digitais, onde a percepção se encontra com os bits, espreita a forma do que antes era de fato forma, existe uma realidade que está fora do alcance da propriedade analógica do olhar.

            *"Arquivos Imperfeitos" é o título de um livro de Fausto Colombo

Cidade de Minas


Leveza neoclássica adornada pela ordem e pelo progresso, quando o bico de pena dos gabinetes hoje fossilizados ditavam os mandos e as benesses.

Abajur


A luz que recorta o leito está amarela como nunca. Deixa seu feixe clarear as idéias, sombrear as tentações, apresentar outra figura.

Arara Vermelha



É a exuberância das cores em um pássaro tipicamente brasileiro e que está em extinção. Percorrem os céus em duplas, são monogâmicas. É difícil crer que elas perdem a liberdade para fazer parte de mostruário ou de excentricidades bem distantes de sua terra natal e natural.



Ficção



Eram doces palavras, nos seus acentos e conotações. O espectro sonoro, o papel em branco ou a tela que exibe o verossímel atendem às maiores artes da representação. Parecia tudo bonito.

                                                                                                       Dicionário Brasileiro de Insultos é da Ateliê Editorial

Circular



Em direção ao mesmo lugar, tentou compensar a ausência com a lembrança, mas a lembrança só trazia na memória a ausência.

Ouvir


No canto do bar, com o estalar da tacada do bilhar, o silvo dos drinks nervosos, a música que realmente importa.

Reféns


Emoldurava do lado de lá a imensidão de um buraco negro. O excesso de matéria ou a falta dela tragou os seres para trancafiá-los em suas vontades.

Voo


Suspenso pelo ar e pelo tempo do disparo, sobrevoava nas alturas, sobre contornos traçados por montanhas, trilhas e picadas, embrenhado na insolação tropical espalhada pelos vários cantos das Minas.