Cyberinsônia


Diante da tela luminosa, desse emaranhado de pixels que insistem em dar formas ao visível e visibilidade ao legível, dessa profusão de sinais e estímulos que se projetam implacavelmente sobre as desgraçadas criaturas que se prostram com seu piscar imperceptível...


Somba: o retorno



Numa segunda-feira típica, pouco antes das 22 horas, o Somba subiu uma vez mais aos palcos daqui do Arraial. Um retorno esperado, maturado e especulado por longos e intermináveis dois anos. Uns 60 sortudos tiveram o privilégio de conhecer o “recheio da bolacha” do novíssimo e não oficialmente lançado álbum “Cuma?”.


O quarteto apresentou a versão beta do que virá ser o lançamento de “Cuma?”. Com uma complexa e enigmática parafernália tecnológica e um profundo senso de experimentalismo, o Somba deu forma a 13 canções que fundem os territórios do erudito e do popular, que celebram com humor e sem afetação o retorno do promissor laboratório sonoro iniciado anos antes, ao fim do último século. A atmosfera é francamente psicodélica.

Estilo? Ao modo da tradição sômbica, a banda se apropriou dos mais variados ritmos e modalidades musicais e concebeu um conjunto de canções muito particulares entre si. Ainda mais experimental do que “Clube da Esquina dos Aflitos”, “Cuma?” vem de um Somba motivado não apenas pelo experimento das sonoridades, mas pela experimentação estética na amplitude do termo, do estudo das possibilidades técnicas da mediação do analógico pelo digital, do turbilhão sensorial que é fazer música para que ela soe como magia.

A revelação

Recebi esses dias um e-mail de um extraterrestre. O ser, pertencente à  “Ordem dos Filhos da Luz” - E.T com RG, caixa-postal e CEP - veio apresentar sua proposta de salvação para o planeta. A despeito do teor surrealista do comunicado, parecia bastante original em comparação à variedade dos recentes discursos dos fundamentalistas ecológicos e religiosos. Ele assim introduziu sua mensagem:

"Irmãos Terrestres, é com muita humildade e espírito fraterno que nos dirigimos a vocês, para lhes pedir que aceitem a nossa ajuda. A situação atual do Planeta é muito mais grave do que imaginam e dependendo do que acontecer com ele, haverá reflexos também nas órbitas dos nossos Planetas, com consequências imprevisíveis. É preciso que saibam e aceitem a VERDADE sobre nós - os Seres Espaciais - que sempre lhes foi encoberta, e por que estamos aqui; têm que conhecer a nossa base de pouso oculta na Cordilheira dos Andes (a Cidade dos Sete Planetas). Trabalhamos com Forças e Energias muito poderosas que não podem, em hipótese alguma, caír nas mãos de pessoas inconscientes; isto seria precipitar o fim da civilização, como já aconteceu num passado remoto na própria Terra, quando permitimos aos Atlantinos o acesso às referidas Forças e Energias."

Isso me fez lembrar de um quadro de Bosch, pintado lá pelo século XV, intitulado como algo semelhante à “The Stone Operation” ou “Extração da Pedra Filosofal”. A tela dá a ver o retrato de um tempo em que religião, arte, magia e ciência se imbricavam em toda promiscuidade evocada na salvação dos mortais seres terrenos. Ao ar livre - pois era preciso se afastar dos miasmas apodrecidos da cidade - um médico, mais místico do que douto, conduz uma cirurgia de trepanação. Um padre trata de extirpar os pecados do enfermo, afinal, estar doente era, sobretudo, padecer do espírito. Sobre a cabeça de uma mulher atenta está o livro para nos lembrar que, apesar de toda a pajelança, a cena se dá com aval do conhecimento formal, esse mito da verdade presente na escritura.

Fiquei então matutando sobre o que, depois de tanto tempo, pode ter mudado nessas mentes criativas que estão sempre a buscar métodos de adestramento para adesão às suas aventuras doutrinárias. Fui tentado a reconhecer que só nos resta aguardar por essa salvação interplanetária. E o E.T., com sua indisfarçável simpatia, nos transmite o alento dos amplos objetivos de sua missão:

"Não somos os monstros grotescos e agressivos que grande parte da mídia lhes apresenta. Na realidade, estamos oferecendo uma oportunidade de SOBREVIVÊNCIA e de FUTURO para esta Humanidade, que caminha para um total extermínio conseqüente de catástrofes naturais, efeito estufa, degradação ambiental, intolerâncias, guerras , conflitos nucleares, terrorismo, fome e epidemias. Muitos de vocês, Irmãos Terrestres, nem sabem por que vivem, e caminham como sonâmbulos, cegos, inconscientes e condicionados aos seus instintos atávicos e aos velhos sistemas políticos, científicos, sociais, econômicos e religiosos."


Perversões dionisíacas - teatro provincial

"A vida é mesmo um teatro,
mas o elenco foi mal escolhido".

Oscar Wilde

Emergem da penumbra das manhãs úmidas os hálitos desta cidade que morosamente insinua funcionar. Sob esse céu de horizonte belo, cada marca intransferível e particular se dilui na generalidade da multidão dos rostos sem face. Que diabo é essa sina diária do ir e vir e voltar para onde veio? Quem são os personagens dessa trama cotidiana que se anuncia sob a batuta desse preguiçoso despertar?

Cá entre as montanhas cada anônimo tem a identificação que lhe cabe, o papel que lhe foi conferido, o estigma característico daquilo que deverá teatralizar com desenvoltura. Todavia, a representação requer um verniz de autenticidade, algo que a torne verdadeira ao menos na sua superfície. No automatismo reiterável do abrir e fechar das cortinas, o espetáculo do parecer ser se justifica pela nobre finalidade indiscutível da performance. É preciso demonstrar competência para estar em cena, saber atribuir a si mesmo poderes especiais, fazê-los emanar pelo cenário com os outros atores.

Todos os dias, a repetição se desdobra à maneira de um ritual. Aquele que se atreve a macular o ordenamento dessa peça diariamente representada carrega o rótulo dos insanos, a cicatriz que nunca se fecha, a condição de não pertencimento ao roteiro forjado para celebrar a farsa.