Simulacros natalinos


Embora as luzes proclamem algo que denominam ser espiritual, a realidade mesma das coisas não se ampara nesta luminescência eletrificada.

Certa vez, no Arraial...


O absinto queima vorazmente, impõe sua presença quando lança nos ares um perfume etílico e nos envolve com delicadas tonalidades e texturas. A combustão ameniza a graduação alcoólica, procura domesticar o que a própria chama prenuncia. Em breve tudo estará imerso nesse mundo outro de sonho e sensação.

Labor


Experimentou um breve momento de ócio, quase alheio ao tempo cronológico.


Lembranças, memórias e outras miudezas temporais

"O que é o tempo?
Se não me perguntam, eu sei.
Se me perguntam, já não sei".

Aurélio Agostinho


Reservei parte do domingo para revirar umas velharias que se acumularam ao longo desses anos. Criou-se uma babel de documentos e de artefatos, o caos das memórias revolvidas por essa atividade arqueológica; odores, rastros e fragmentos de toda sorte de quinquilharias, entesouradas por mania, pudor ou por um certo fetiche gratuito e inútil com a posteridade, essa vã tentativa de tornar o passado eternamente presentificado.

Não foi surpreendente deparar com objetos tidos como desaparecidos há tempos, supostamente tragados por algum buraco negro: CDs; pecinhas, pedaços e partes de coisas não mais existentes em sua totalidade; páginas datilografadas já amarelas pelo castigo do tempo; cartas manuscritas repletas de lembranças, de promessas e de doces amenidades pertencentes a um contexto tão remoto e que agora insistia em persistir diante de mim, de restaurar um estado sem sentido algum na realidade atual.

E foi entre um objeto e outro, em meio ao labirinto memorial que se formou na dispersão daquelas coisas, que encontrei um vinil cujo significado é menos resultante de seu valor estético do que da coleção de eventos que sua temporalidade faz relembrar. Lá estava, após anos de confinamento acidental, o álbum Bête Noire, de Brian Ferry, lançado em 1987. Ferry... um crooner dandi do final do século XX, remanescente do Roxy Music, uma legenda do tão desengonçadamente rotulado art rock. Uma aquisição heróica naqueles tempos sem qualquer sinal de CD, web ou mp3, quando o acesso a “objeto cultural” exigia contatos subterrâneos, saber distinguir a realidade do boato com uma investigativa pesquisa de campo, quando aquilo que desembarcava por aqui entre os trópicos assumia o caráter de uma excentricidade caprichosa.

Depois que as lembranças assumiam uma conotação nostálgica, tratei de enterrar tudo aquilo novamente. Fiquei pensando sobre uma ideia de Debray, para quem as relíquias, esses objetos que carregam uma herança memorial, não precisam ser vistos, basta que existam.

Ode ao mutismo

Sob o manto negro infinito do céu que se perfura com o pontilhado da luz distante dos astros, o silêncio na terra, esse murmúrio melodioso das criaturas, parece nos lembrar de como são toscas as palavras que utilizamos para tatear aquilo que pertence à realidade sensível.

Era uma vez... (1930-2007) Aqui Ô...


Não é novidade que os jornalecos que ostentam a tríade bunda-sangue-futebol tomaram conta das ruas da província. Circulam ao preço de balinhas para satisfazer o fetiche pelo sensacional, como se a urgência do noticiar se amparasse na contundência trágica do mundo cão cotidiano, realidade que se emoldura com os tons festivos das carnes femininas e do vale tudo samba futebol.

Após 77 anos de circulação, no apagar das luzes do mês de julho, os Diários e Emissoras Associados jogaram a pá de cal no jornal Diário da Tarde. Os motivos alegados são os de sempre: tiragens cada vez mais minguadas, anunciantes que se escorregam para publicações outras, estalos geniais de homens de negócios que inserem alguma gota de factualidade em meio à predominância da publicidade que paga o noticioso. Sim, a imprensa é um negócio, um empreendimento como qualquer outro. Ergue e desfaz suas empreitadas ao ritmo do tintilhar sinfônico dos cobres.

Ainda que sua natureza editorial fosse quase sempre sensacionalista, vão deixar saudades certas narrativas impressas no então tradicional e popular DT. Preciosidades como um informe sobre um assalto numa estação do metrô do Arraial, publicada em uma já distante quinta-feira de 1º de fevereiro de 2007:

Assaltante preso no metrô

"O biscateiro Júnio dos Santos Borges, de 23 anos, o Cabuloso , foi preso em flagrante na tarde de ontem, logo depois de assaltar um vendedor ambulante dentro da estação do metrô do Bairro Eldorado, em Contagem, Grande BH. Ele agiu com o irmão Wagner dos Santos Borges, de 25. Com ele, foi apreendido um revólver Rossi calibre 38 com munição. Entre seus documentos, havia um bilhete, supostamente escrito por ele, cujo teor era uma mensagem em que dizia que já tinha feito mais de 100 assaltos, mas que agora se regenerou . O bilhete citava a namorada dele, de nome Cláudia , quando dizia que ela o ajudou muito a sair da vida do crime e que agora se tornara um novo homem".

Que venha a era do jornalzim panfletim.

Cyberinsônia


Diante da tela luminosa, desse emaranhado de pixels que insistem em dar formas ao visível e visibilidade ao legível, dessa profusão de sinais e estímulos que se projetam implacavelmente sobre as desgraçadas criaturas que se prostram com seu piscar imperceptível...


Somba: o retorno



Numa segunda-feira típica, pouco antes das 22 horas, o Somba subiu uma vez mais aos palcos daqui do Arraial. Um retorno esperado, maturado e especulado por longos e intermináveis dois anos. Uns 60 sortudos tiveram o privilégio de conhecer o “recheio da bolacha” do novíssimo e não oficialmente lançado álbum “Cuma?”.


O quarteto apresentou a versão beta do que virá ser o lançamento de “Cuma?”. Com uma complexa e enigmática parafernália tecnológica e um profundo senso de experimentalismo, o Somba deu forma a 13 canções que fundem os territórios do erudito e do popular, que celebram com humor e sem afetação o retorno do promissor laboratório sonoro iniciado anos antes, ao fim do último século. A atmosfera é francamente psicodélica.

Estilo? Ao modo da tradição sômbica, a banda se apropriou dos mais variados ritmos e modalidades musicais e concebeu um conjunto de canções muito particulares entre si. Ainda mais experimental do que “Clube da Esquina dos Aflitos”, “Cuma?” vem de um Somba motivado não apenas pelo experimento das sonoridades, mas pela experimentação estética na amplitude do termo, do estudo das possibilidades técnicas da mediação do analógico pelo digital, do turbilhão sensorial que é fazer música para que ela soe como magia.

A revelação

Recebi esses dias um e-mail de um extraterrestre. O ser, pertencente à  “Ordem dos Filhos da Luz” - E.T com RG, caixa-postal e CEP - veio apresentar sua proposta de salvação para o planeta. A despeito do teor surrealista do comunicado, parecia bastante original em comparação à variedade dos recentes discursos dos fundamentalistas ecológicos e religiosos. Ele assim introduziu sua mensagem:

"Irmãos Terrestres, é com muita humildade e espírito fraterno que nos dirigimos a vocês, para lhes pedir que aceitem a nossa ajuda. A situação atual do Planeta é muito mais grave do que imaginam e dependendo do que acontecer com ele, haverá reflexos também nas órbitas dos nossos Planetas, com consequências imprevisíveis. É preciso que saibam e aceitem a VERDADE sobre nós - os Seres Espaciais - que sempre lhes foi encoberta, e por que estamos aqui; têm que conhecer a nossa base de pouso oculta na Cordilheira dos Andes (a Cidade dos Sete Planetas). Trabalhamos com Forças e Energias muito poderosas que não podem, em hipótese alguma, caír nas mãos de pessoas inconscientes; isto seria precipitar o fim da civilização, como já aconteceu num passado remoto na própria Terra, quando permitimos aos Atlantinos o acesso às referidas Forças e Energias."

Isso me fez lembrar de um quadro de Bosch, pintado lá pelo século XV, intitulado como algo semelhante à “The Stone Operation” ou “Extração da Pedra Filosofal”. A tela dá a ver o retrato de um tempo em que religião, arte, magia e ciência se imbricavam em toda promiscuidade evocada na salvação dos mortais seres terrenos. Ao ar livre - pois era preciso se afastar dos miasmas apodrecidos da cidade - um médico, mais místico do que douto, conduz uma cirurgia de trepanação. Um padre trata de extirpar os pecados do enfermo, afinal, estar doente era, sobretudo, padecer do espírito. Sobre a cabeça de uma mulher atenta está o livro para nos lembrar que, apesar de toda a pajelança, a cena se dá com aval do conhecimento formal, esse mito da verdade presente na escritura.

Fiquei então matutando sobre o que, depois de tanto tempo, pode ter mudado nessas mentes criativas que estão sempre a buscar métodos de adestramento para adesão às suas aventuras doutrinárias. Fui tentado a reconhecer que só nos resta aguardar por essa salvação interplanetária. E o E.T., com sua indisfarçável simpatia, nos transmite o alento dos amplos objetivos de sua missão:

"Não somos os monstros grotescos e agressivos que grande parte da mídia lhes apresenta. Na realidade, estamos oferecendo uma oportunidade de SOBREVIVÊNCIA e de FUTURO para esta Humanidade, que caminha para um total extermínio conseqüente de catástrofes naturais, efeito estufa, degradação ambiental, intolerâncias, guerras , conflitos nucleares, terrorismo, fome e epidemias. Muitos de vocês, Irmãos Terrestres, nem sabem por que vivem, e caminham como sonâmbulos, cegos, inconscientes e condicionados aos seus instintos atávicos e aos velhos sistemas políticos, científicos, sociais, econômicos e religiosos."


Perversões dionisíacas - teatro provincial

"A vida é mesmo um teatro,
mas o elenco foi mal escolhido".

Oscar Wilde

Emergem da penumbra das manhãs úmidas os hálitos desta cidade que morosamente insinua funcionar. Sob esse céu de horizonte belo, cada marca intransferível e particular se dilui na generalidade da multidão dos rostos sem face. Que diabo é essa sina diária do ir e vir e voltar para onde veio? Quem são os personagens dessa trama cotidiana que se anuncia sob a batuta desse preguiçoso despertar?

Cá entre as montanhas cada anônimo tem a identificação que lhe cabe, o papel que lhe foi conferido, o estigma característico daquilo que deverá teatralizar com desenvoltura. Todavia, a representação requer um verniz de autenticidade, algo que a torne verdadeira ao menos na sua superfície. No automatismo reiterável do abrir e fechar das cortinas, o espetáculo do parecer ser se justifica pela nobre finalidade indiscutível da performance. É preciso demonstrar competência para estar em cena, saber atribuir a si mesmo poderes especiais, fazê-los emanar pelo cenário com os outros atores.

Todos os dias, a repetição se desdobra à maneira de um ritual. Aquele que se atreve a macular o ordenamento dessa peça diariamente representada carrega o rótulo dos insanos, a cicatriz que nunca se fecha, a condição de não pertencimento ao roteiro forjado para celebrar a farsa. 

E a guerra, enfim, noticiada na província*

Sr. Lindolfo nunca voltava para casa sem antes escutar o barulho da impressão. Depois do trabalho artesanal do linotipo, era a vez das máquinas. E elas rangiam. Metal com metal, metal com papel, cheiro de tinta. A novidade vai estar pronta. Embrulhada, letrada e numerada.

Amanhã as manchetes vão anunciar o que Sr. Lindolfo havia escutado com tanta atenção no rádio. O locutor informou que a Polônia não é mais um país soberano. Na sua coluna diária, Sr. Lindolfo quer ir além e especula que a França é a próxima vítima. O Japão assola o oriente e sejam quais forem as boas intenções dos redatores, estão eles desde já orientados a dizer que a guerra é mundial. Mas os homens que fazem a guerra fizeram também os cabos submarinos. Corre ao telefone, sintoniza o rádio para saber que Vargas vai lutar contra o Eixo. Tudo vai estar estampado na primeira página. Ainda que seja apenas por uma vez.

O assunto que sai pela manhã está pronto, a máquina de impressão terminou o serviço e ainda há tempo para o Sr. Lindolfo dar mais uma espiada no que vai pautar as discussões nos bares e nas casas das famílias. O chacoalhar da máquina de fazer notícia sempre foi injusto com Sr. Lindolfo. O movimento é irreversível. Não permite alterar o que chega por telégrafo à redação. Pois agora, ele sabe que na França instauraram uma tal de República de Vichy e que tem gente muito satisfeita com a vestimenta fascista daquele país. Não dá mais para contar para todo mundo. E o Sr. Lindolfo nunca volta para casa sem antes saber o que deixou de ser publicado no seu diário. Observa os exemplares só para confirmar o que vai faltar. Chega em casa, tenta organizar as idéias sobre aquele mundo confuso e lamenta por não poder tornar o ontem tão novo quanto o hoje.

*Lindolfo Espechit (1897-1999), jornalista,
foi diretor da Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais,
fez as primeiras transmissões radiofônicas no estado.

A culpa


Dizem que no seu apogeu, Vila Rica - mais tarde chamada definitivamente de Ouro Preto - era mais populosa do que Londres e Paris. Narrativas acusam uma proporção de escravos e homens livres de três para um na metade do século 18. As razões de tal ordenamento são bastante conhecidas, cujas motivações se encerram na finalidade econômica com a qual a Corôa Portuguesa fez nortear os traçados dos caminhos e picadas que conduziam ao eldorado barroco.

É digna de menção a igreja que homenageia o chamado São Francisco de Assis, ícone católico que a história da cristandade atesta ter proclamado o modo de vida simples e essencial, nos limites entre a pobreza e a miserabilidade, sem qualquer sinal de luxo ou ostentação. Os templos ouro-pretanos, a exemplo da Igreja São Francisco de Assis, erguidos durante a efervescente corrida ao ouro, exibem exuberante fausto. São pomposamente adornados, recobertos com detalhes dourados, entalhes encrustados do ouro das minas, como se louvassem, com todos os indícios de riqueza, justamente aquele que, entre os crentes e tementes das forças celestiais, era o mais avesso à materialidade mundana.

Por certo, não é gratuita a corrente idéia de que o barroco abriga a contradição das consciências, das mentalidades e das estéticas.