
Embora as luzes proclamem algo que denominam ser espiritual, a realidade mesma das coisas não se ampara nesta luminescência eletrificada.


E foi entre um objeto e outro, em meio ao labirinto memorial que se formou na dispersão daquelas coisas, que encontrei um vinil cujo significado é menos resultante de seu valor estético do que da coleção de eventos que sua temporalidade faz relembrar. Lá estava, após anos de confinamento acidental, o álbum Bête Noire, de Brian Ferry, lançado em 1987. Ferry... um crooner dandi do final do século XX, remanescente do Roxy Music, uma legenda do tão desengonçadamente rotulado art rock. Uma aquisição heróica naqueles tempos sem qualquer sinal de CD, web ou mp3, quando o acesso a “objeto cultural” exigia contatos subterrâneos, saber distinguir a realidade do boato com uma investigativa pesquisa de campo, quando aquilo que desembarcava por aqui entre os trópicos assumia o caráter de uma excentricidade caprichosa.
Sob o manto negro infinito do céu que se perfura com o pontilhado da luz distante dos astros, o silêncio na terra, esse murmúrio melodioso das criaturas, parece nos lembrar de como são toscas as palavras que utilizamos para tatear aquilo que pertence à realidade sensível.


Numa segunda-feira típica, pouco antes das 22 horas, o Somba subiu uma vez mais aos palcos daqui do Arraial. Um retorno esperado, maturado e especulado por longos e intermináveis dois anos. Uns 60 sortudos tiveram o privilégio de conhecer o “recheio da bolacha” do novíssimo e não oficialmente lançado álbum “Cuma?”.
O quarteto apresentou a versão beta do que virá ser o lançamento de “Cuma?”. Com uma complexa e enigmática parafernália tecnológica e um profundo senso de experimentalismo, o Somba deu forma a 13 canções que fundem os territórios do erudito e do popular, que celebram com humor e sem afetação o retorno do promissor laboratório sonoro iniciado anos antes, ao fim do último século. A atmosfera é francamente psicodélica.
Estilo? Ao modo da tradição sômbica, a banda se apropriou dos mais variados ritmos e modalidades musicais e concebeu um conjunto de canções muito particulares entre si. Ainda mais experimental do que “Clube da Esquina dos Aflitos”, “Cuma?” vem de um Somba motivado não apenas pelo experimento das sonoridades, mas pela experimentação estética na amplitude do termo, do estudo das possibilidades técnicas da mediação do analógico pelo digital, do turbilhão sensorial que é fazer música para que ela soe como magia.
Recebi esses dias um e-mail de um extraterrestre. O ser, pertencente à “Ordem dos Filhos da Luz” - E.T com RG, caixa-postal e CEP - veio apresentar sua proposta de salvação para o planeta. A despeito do teor surrealista do comunicado, parecia bastante original em comparação à variedade dos recentes discursos dos fundamentalistas ecológicos e religiosos. Ele assim introduziu sua mensagem:
Isso me fez lembrar de um quadro de Bosch, pintado lá pelo século XV, intitulado como algo semelhante à “The Stone Operation” ou “Extração da Pedra Filosofal”. A tela dá a ver o retrato de um tempo em que religião, arte, magia e ciência se imbricavam em toda promiscuidade evocada na salvação dos mortais seres terrenos. Ao ar livre - pois era preciso se afastar dos miasmas apodrecidos da cidade - um médico, mais místico do que douto, conduz uma cirurgia de trepanação. Um padre trata de extirpar os pecados do enfermo, afinal, estar doente era, sobretudo, padecer do espírito. Sobre a cabeça de uma mulher atenta está o livro para nos lembrar que, apesar de toda a pajelança, a cena se dá com aval do conhecimento formal, esse mito da verdade presente na escritura.
Emergem da penumbra das manhãs úmidas os hálitos desta cidade que morosamente insinua funcionar. Sob esse céu de horizonte belo, cada marca intransferível e particular se dilui na generalidade da multidão dos rostos sem face. Que diabo é essa sina diária do ir e vir e voltar para onde veio? Quem são os personagens dessa trama cotidiana que se anuncia sob a batuta desse preguiçoso despertar?
Sr. Lindolfo nunca voltava para casa sem antes escutar o barulho da impressão. Depois do trabalho artesanal do linotipo, era a vez das máquinas. E elas rangiam. Metal com metal, metal com papel, cheiro de tinta. A novidade vai estar pronta. Embrulhada, letrada e numerada.